A medicalização do comportamento infantil

Discutir a medicalização infantil gera opiniões controversas, principalmente porque envolve aspectos éticos, sociais e econômicos. Entretanto, o tema é multifacetado e provoca debates importantes sobre como podemos melhor apoiar as crianças em seu desenvolvimento.

\”Conciliar a função de guardião dos filhos, que envolve protegê-los, cuidar, amar, vigiar e educá-los, com a correria do dia a dia, pode exaurir os pais. Muitas vezes, esses buscam soluções rápidas para os problemas cotidianos, como a medicação.

Em termos simples, a medicalização do comportamento infantil refere-se ao tratamento de questões emocionais ou comportamentais das crianças por meio de intervenções médicas, como o uso de medicamentos. Mas até que ponto essa abordagem é realmente eficaz?

Um estudo realizado pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) norte-americano, em 2014, apontou um aumento significativo na medicalização de crianças. Na época, mais de 10 mil crianças haviam recebido medicamentos psicoestimulantes, como a Ritalina. Um dado importante é que, entre 2011 e 2012, cerca de 8% das crianças americanas entre 6 e 17 anos foram medicadas para tratar problemas comportamentais ou emocionais. No Brasil, também há pesquisas que indicam um aumento similar, abordando desde diagnósticos de depressão até o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). É importante refletir, pois, antes disso, muitos sintomas de TDAH  não eram reconhecidos e a condição não recebia a atenção devida.

Considerando esses fatos, neste artigo, vamos explorar diferentes aspectos da medicalização para o público infantil, o que é a medicalização e os potenciais prejuízos dessa abordagem para as crianças.

O que é medicalização

O Conselho Federal de Psicologia possui uma visão abrangente sobre o tema. Para a entidade, “entende-se por medicalização o processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como \’doenças\’, \’transtornos\’ e \’distúrbios\’, que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais e afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como individuais, e problemas sociais e políticos são convertidos em biológicos.” Para o Conselho, esse processo gera sofrimento psíquico tanto para a pessoa quanto para sua família, que acabam responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais se eximem de suas responsabilidades.

Esse fenômeno gera um efeito dominó, no qual pessoas classificadas como doentes tornam-se pacientes e, em seguida, consumidoras de tratamentos, terapias e medicamentos. Isso transforma seus corpos no alvo dos problemas que, na lógica medicalizante, devem ser sanados de forma individual, como destaca o caderno da Campanha \’Não à Medicalização da Vida\’, do Conselho Federal de Psicologia.

Assim como o CFP, o filósofo francês Michel Foucault já tecia críticas à tendência de transformar questões que não são médicas em problemas que precisam de tratamento médico. Para ele, essa abordagem artificial ignora as causas mais profundas dessas questões. 

Em uma de suas obras, o filósofo francês já alertava para “o fato de que algumas questões são apresentadas como transtornos, distúrbios e/ou doenças com o propósito de esconder questões políticas, sociais e afetivas que impactam as pessoas. Isso resulta no erro de tratar como patológico algo que é, na verdade, cultural”.

Outro fator importante relacionado à medicalização é que existem diversos interesses envolvidos, incluindo o lucro das indústrias farmacêuticas.

Medicalização Infantil

Ter dificuldade em entender ou lidar com as emoções dos filhos é um problema comum para muitos pais. Não é raro que eles confundam uma simples emoção, como a tristeza passageira, com um transtorno mais sério que necessita intervenção médica. 

Nos últimos anos, tem-se falado muito sobre a medicalização do comportamento infantil. O uso acelerado de medicamentos para tratar o comportamento das crianças tem gerado preocupação entre especialistas. Isso ocorre porque, em vez de buscar alternativas como terapia ou apoio emocional, muitos pais e profissionais optam pelo uso de remédios.

O psiquiatra Rossano Cabral Lima, na reportagem Medicalização Infantil, do programa Caminhos da Reportagem, comentou o aumento desse fenômeno: “Esse aumento foi mais acentuado a partir dos anos 90, quando começou a ser detectado inicialmente nos EUA, principalmente com a disseminação do diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”. 

Está mais do que comprovado que vivemos em uma época em que parece haver uma pílula para curar toda e qualquer angústia da vida. Embora nossa sociedade enxergue o remédio como a solução para problemas de saúde, é preciso considerar que muitas pessoas não estão plenamente cientes dos possíveis efeitos adversos que os medicamentos podem causar.

Essa abordagem superficial levanta a questão de como estamos lidando com as emoções. Em vez de conversar sobre o que está acontecendo ou tentar entender melhor os sentimentos, parece que a solução é simplesmente oferecer uma pílula \’mágica\’. Hoje em dia, é como se sempre houvesse um remédio disponível para lidar com qualquer problema ou angústia. Isso nos leva a questionar se estamos realmente ajudando as crianças a compreender e lidar com suas emoções de maneira saudável, ou se estamos apenas fechando os olhos para não enxergar a verdade.

Para ilustrar, um estudo publicado na revista científica Pediatrics, em 2020, revelou que mais de 40,7% dos pacientes entre 2 e 24 anos que receberam prescrições para tratar o TDAH também foram prescritos com antidepressivos.Como resultado, mais de 50 tipos diferentes de medicamentos psicotrópicos foram utilizados simultaneamente. Esses pacientes, que apresentavam sintomas de TDAH e foram tratados com múltiplos medicamentos, levantam preocupações sobre a medicalização excessiva.

Além disso, segundo o Conselho Federal de Farmácia, no Brasil, houve um aumento expressivo de cerca de 58% nas vendas desses medicamentos entre 2017 e 2021, mesmo com o alto custo dessas medicações no mercado nacional.

Alerta sobre os riscos da medicação e automedicação

A ingestão inadequada de medicamentos pode causar reações adversas em diversos sistemas do corpo da criança, incluindo os sistemas gastrointestinal, nervoso, cardiovascular, respiratório, metabólico, endócrino e até psicológico. Entre essas reações, estão:

  • Dependência;
  • Intoxicação;
  • Agitação;
  • Sonolência;
  • Tontura;
  • Confusão mental;
  • Dificuldade para respirar;
  • Danos hepáticos ou renais;
  • E muitas outras.

A automedicação é perigosa e pode prejudicar gravemente a saúde de qualquer pessoa, especialmente de crianças. Em 2022, a Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas (Abifarma) informou que cerca de 20 mil pessoas morrem anualmente no Brasil devido à automedicação, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) destacou a importância de promover o uso racional de medicamentos, enfatizando a necessidade de administrar os fármacos de maneira adequada, considerando as necessidades clínicas e individuais de cada paciente.

A Indústria Farmacêutica

Costumamos brincar que a cada esquina tem uma farmácia, e não estamos tão errados. A cada dia, cresce o número de farmácias no Brasil. De acordo com o Conselho Federal de Farmácia, já existem aproximadamente 90 mil estabelecimentos no país.

Somente em 2022, o mercado farmacêutico brasileiro movimentou R$ 106,64 bilhões, representando um aumento de 61% em relação a 2018. Considerando o contexto da medicalização infantil, esse cenário mostra que recorrer a soluções farmacológicas para problemas emocionais ou comportamentais das crianças pode ser comum.

Para a pesquisadora Sidarta Ribeiro, “a medicalização excessiva que caracteriza as últimas décadas é, na verdade, infelizmente, um reflexo de um conflito de interesses entre a indústria farmacêutica e a medicina\”.

Alternativas para apoiar o desenvolvimento infantil sem recorrer à medicalização

Levando em consideração que seu filho ainda não tenha um diagnóstico formal e que muitos comportamentos podem ser apenas formas de expressão da diversidade humana, é fundamental considerar alternativas que favoreçam seu desenvolvimento de maneira mais natural e equilibrada.

Existem várias ações que podem ser adotadas para apoiar o bem-estar da criança de maneira integral, sem recorrer a soluções imediatas. Por exemplo, quando alguém se sente estressado, é comum buscar formas rápidas de relaxamento, como assistir a um vídeo divertido ou usar um aplicativo de meditação. Essas práticas também podem ser boas alternativas para crianças que estão enfrentando momentos de tensão ou inquietação.

A seguir, confira algumas sugestões de como oferecer alternativas para apoiar o seu filho e ajudá-lo a se desenvolver de maneira saudável, promovendo seu bem-estar emocional e físico.

Monitoramento das crianças

Acompanhe de perto o seu filho. Observe o seu comportamento em casa e na rua, pois isso é fundamental para que a escola e a família entendam quais são as causas de determinadas condutas.

Promova a escuta ativa

Escuta ativa nada mais é do que prestar atenção no que a outra pessoa está dizendo. Para a pediatra Ana Claudia Carramaschi, em entrevista ao portal Ninhos do Brasil, “a escuta ativa é estarmos verdadeiramente presentes naquele momento para os nossos filhos. É ouvir o que eles estão dizendo, sem pensar em tudo aquilo que está acontecendo ao redor e em nossa vida que não está ali naquele momento”.

Por isso, invista na escuta e no diálogo com seus filhos, pois isso contribui para que eles desenvolvam habilidades de comunicação e expressão e, o mais importante, se sintam seguros para compartilhar emoções e sentimentos. Essa pode ser uma oportunidade incrível para identificar problemas sem recorrer a soluções médicas.

Busque métodos terapêuticos

A terapia psicológica e as intervenções comportamentais, como técnicas de relaxamento, mindfulness, terapia comportamental, intervenções em grupo, entre outras, podem ajudar as pessoas a lidar com problemas emocionais e comportamentais sem precisar usar medicamentos. 

Desenvolvimento de habilidades socioemocionais

É importante ajudar os pequenos a entender e a lidar com seus sentimentos e emoções. Quando as crianças aprendem a reconhecer o que sentem, elas conseguem expressar essas emoções de forma mais saudável. Assim, elas estão trabalhando o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. 

Esses aspectos podem ser trabalhados tanto na escola quanto em casa, com tempo para observar as reações e orientar de forma adequada.

Fomente o ambiente social

Estimular a socialização e o apoio familiar é criar oportunidades para que as pessoas se encontrem e se ajudem. Participar de grupos de apoio e atividades comunitárias pode ser essencial para enfrentar dificuldades da vida, sem depender sempre de diagnósticos médicos.

Procurar outras atividades

É fundamental adotar abordagens alternativas que promovam o bem-estar e o desenvolvimento das crianças, como brincadeiras ao ar livre, jogos em equipe, prática de esportes, atividades artísticas, entre outras.

O que dizem os especialistas

Em uma reportagem realizada pela TV Brasil, em 2019, intitulada \’Caminhos da Reportagem | Medicalização Infantil\’, especialistas explicaram as diversas vertentes da medicalização para crianças.

O pediatra Daniel Becker explica que a medicalização infantil ocorre em paralelo a um fenômeno mais amplo e global: a medicalização da vida. Ele destaca que a medicalização infantil é um desdobramento mais perverso dessa tendência global. “Hoje em dia, existe um discurso biomédico para justificar os problemas de comportamento das crianças. Não estou negando isso, de forma nenhuma, mas essa situação representa uma minoria dos casos. A maioria das crianças está sendo induzida a tomar medicamentos de forma inadequada, são os diagnósticos falsos. Não é à toa que passamos de 70 mil caixas em 1999 para 2 milhões de caixas em 2010. Isso representa um aumento superior a 2000%”.

Rossano Cabral Lima afirma que existem dois lados envolvidos nessa questão: “Por um lado, estamos conseguindo enxergar melhor que crianças e adolescentes também podem adoecer, psicologicamente e psiquiatricamente. Mas, por outro lado, tem havido um aumento significativo, em um período muito curto, de diagnósticos e prescrição de psicofármacos para crianças, e nem sempre podemos ter certeza de que isso está sendo feito de maneira cautelosa e racional”.

No que diz respeito ao uso inadequado de remédios fortes, como os de tarja preta, o neuropediatra Carlos Nogueira Aucélio faz um alerta sobre a medicação precoce em crianças, principalmente em uma fase em que o cérebro ainda está em desenvolvimento. “A gente não pode sair medicando uma criança cujo cérebro está em transformação, porque isso pode trazer prejuízos a médio e longo prazo, principalmente se a medicação for iniciada muito precocemente. Portanto, é preciso ter cuidado”, afirmou em entrevista.

Para a psicóloga e psicopedagoga Isa Minatel, o aumento da medicalização para o público infantil para tratar comportamentos e emoções pode ser revertido, principalmente com o apoio da família. “Não hesitaria em dizer que muito do comportamento inadequado das crianças é consequência da ignorância dos pais — não ignorância no sentido de falta de inteligência, mas sim da falta de conhecimento sobre as crianças, sobre o desenvolvimento cerebral, sobre temperamentos e sobre como agir com elas. É muito grave o que podemos fazer com uma criança sem consciência disso, achando que estamos acertando, fazendo o bem ou até mesmo arrasando”.

Papel da escola

A escola desempenha um papel fundamental na identificação de dificuldades de aprendizagem, comportamento e desenvolvimento emocional das crianças.

Para a orientadora educacional Sonia Gomes Teixeira da Silva, também em entrevista à TV Brasil, a escola é um contexto social muito privilegiado porque trabalha com a coletividade. Sendo assim, esse ambiente coletivo permite que os comportamentos sejam observados em um contexto mais amplo, ajudando a identificar o que é considerado normal ou esperado para cada faixa etária.

A profissional explica que “quando há uma criança que destoa desse grupo, que fica muito disfuncional em relação à rotina e se apresenta de maneira inadequada em várias atividades — não apenas em uma, mas de forma constante — esse comportamento observável é o primeiro sinal para você ligar o alerta e começar a observar essa criança rotineiramente”.

Conclusão

A medicalização infantil é um tema importante que deve ser discutido nas esferas escolares, médicas e familiares, e tratado também pelo governo.

A correria e as responsabilidades do dia a dia consomem muitos pais, que, por vezes, podem ter dificuldade em distinguir um comportamento simples dos filhos de algo mais sério. No entanto, é importante observar esses comportamentos e buscar ajuda de profissionais.

Neste artigo, buscamos apresentar a visão de especialistas sobre a medicalização da vida infantil, um fenômeno que está crescendo a nível global. Eles alertam que é um tema que deve ser tratado com cautela, pois nem todas as crianças que apresentam comportamentos difíceis ou desafios emocionais necessitam de medicação.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *