A promiscuidade entre indústria e medicina: o exemplo da Nestlé e da Pediatria no Brasil

A saúde infantil é um tema sensível e cada vez mais influenciado pelas estratégias da indústria farmacêutica e alimentícia. A relação com a medicina levanta debates sobre ética e bem-estar social, especialmente quando se percebe que o lucro pode se sobrepor à saúde pública e ao meio ambiente. 

Entre 2006 e 2020, houve um aumento expressivo nas vendas de fórmulas infantis comuns no Brasil, de R$280 milhões para R$2,3 bilhões anuais, um crescimento de 7,5 vezes. No mesmo período, as fórmulas especializadas, como as sem lactose ou para condições específicas de saúde infantil, cresceram ainda mais, atingindo R$307 milhões em 2020, de acordo com um estudo publicado na revista Globalization and Health. A pesquisa revela como essas empresas contornam leis brasileiras que regulam a venda e promoção de produtos alimentícios para crianças, como fórmulas infantis e papinhas.

O impacto é evidente: em 1996, apenas 23% das crianças brasileiras recebiam exclusivamente leite materno nos primeiros seis meses de vida. Embora esse índice tenha aumentado para 45% em 2019, ainda estamos distantes da meta de 70% recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa lacuna ilustra como o marketing de substitutos do leite materno e outros alimentos infantis influencia as escolhas das famílias, dificultando o alcance das diretrizes de saúde recomendadas para um desenvolvimento saudável na infância.

Indústria e medicina

A relação entre a indústria farmacêutica e os profissionais de saúde é marcada por práticas controversas, onde a busca pelo lucro, muitas vezes, coloca a ética em segundo plano. Médicos, especialmente pediatras, se tornaram alvos estratégicos de campanhas que visam influenciar prescrições e recomendações. “Essa é uma prática muito conhecida que acontece no Brasil há décadas. Existem muitos pediatras que são contra essa influência das empresas, mas é algo muito institucional. As empresas investem num verdadeiro massacre de propagandas com os benefícios para que depois o médico olhe para os produtos dessas marcas com outros olhos”, explica o pediatra Daniel Becker, sanitarista do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.

Essas estratégias não se limitam à indústria farmacêutica. A Nestlé e outras grandes empresas alimentícias, como a Danone, têm focado no patrocínio a profissionais da saúde para consolidar sua influência. Segundo um estudo da Fiocruz, a Nestlé é mencionada como patrocinadora por 85,1% dos pediatras, enquanto a Danone aparece com 65,3%. Entre os incentivos mais comuns estão materiais de escritório (49,5%), refeições e festas (29,9%), brindes (21,6%) e patrocínios para congressos, incluindo pagamento de inscrição (6,2%) e passagens (2,1%).

O estudo Multi NBCAL, realizado por 10 instituições, incluindo Fiocruz e USP, revelou que sete a cada dez pediatras recebem incentivos da indústria de substitutos do leite materno durante eventos científicos, apesar da prática ser ilegal no Brasil. Entre os nutricionistas, a proporção é de dois a cada cinco, e, entre fonoaudiólogos, um a cada três. A pesquisa entrevistou 217 profissionais entre 2018 e 2019 e constatou que 85,7% deles participaram de congressos nos últimos dois anos; destes, mais da metade contava com o apoio de empresas de fórmulas infantis.

Além do patrocínio direto, a indústria utiliza outra tática questionável: o financiamento de estudos científicos, muitas vezes manipulando dados e publicando apenas os resultados favoráveis. Isso mascara os efeitos reais de determinados medicamentos ou alimentos e, em alguns casos, manipula a \”opinião científica\” de médicos.

O legado controverso da Nestlé

A Nestlé, embora reconhecida como a maior indústria de alimentos infantis do mundo, carrega um histórico controverso que lhe rendeu o apelido de \”Baby-Killer\” (assassina de bebês, em português) devido às práticas agressivas de promoção de fórmulas infantis. A empresa lançou fórmulas como substitutas do leite materno, incentivando seu uso em maternidades de países em desenvolvimento, o que frequentemente resultou em desnutrição e até mortalidade infantil. Essa estratégia visava lucros, mas tinha um alto custo para a saúde de bebês, principalmente em regiões com menos recursos.

Essas práticas provocaram forte oposição de movimentos sociais, especialmente do feminismo e de organizações de saúde pública, que denunciavam a desinformação promovida pela Nestlé sobre a importância do aleitamento materno. Apesar dos esforços recentes para melhorar sua imagem, o envolvimento contínuo da Nestlé com pediatras brasileiros gera suspeitas sobre as motivações por trás de suas campanhas e parcerias. Afinal, ao influenciar pediatras — profissionais que têm grande autoridade junto a mães e pais na tomada de decisões sobre a alimentação infantil —, a empresa consegue impactar diretamente seu público-alvo de maneira estratégica e sutil.

A Nestlé frequentemente aparece nas listas de empresas com práticas ambientais e de saúde questionáveis. Um exemplo disso é o uso excessivo de açúcar em produtos infantis, como o leite em pó Ninho “Fases,” contribuindo para a formação de um paladar infantil dependente de açúcar, o que prejudica a saúde das crianças a longo prazo. A empresa ainda utilizou símbolos em suas campanhas, como o famoso urso branco, para promover produtos de forma a atrair a confiança dos consumidores, inclusive com ações que incentivaram o desmame precoce em diversas regiões do mundo, antes que as regulamentações fossem implementadas.

Essas práticas foram combatidas e regulamentadas ao longo dos anos, mas o impacto histórico permanece como um exemplo das consequências de estratégias empresariais que priorizam o lucro em detrimento da saúde pública.

O papel da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é uma entidade de grande importância na promoção do aleitamento materno e na defesa da saúde infantil no Brasil. Nos últimos anos, a SBP tem intensificado seus esforços para ampliar a licença-maternidade e conscientizar sobre os benefícios da amamentação. Contudo, sua relação de longa data com a Nestlé levanta preocupações éticas e questiona a imparcialidade da instituição, que recebe patrocínios da gigante alimentícia para uma série de atividades, como cursos, publicações e campanhas.

Estudos, como o publicado na revista Globalization and Health, apontam que a proximidade da SBP com empresas como a Nestlé e a Danone, que juntas controlam mais de 90% do mercado de fórmulas infantis no Brasil, cria um conflito de interesses prejudicial. A Nestlé, por exemplo, realiza desde 1956 um curso de atualização em pediatria em parceria com a SBP e, em 2020, lançou um programa de formação para estudantes de pediatria, com bolsas de estudo no exterior para os mais bem avaliados. Esse programa contou com representantes da Nestlé e até de pediatras que já coordenaram pesquisas financiadas pela Danone, aumentando a percepção de uma possível influência no direcionamento das recomendações pediátricas.

Além disso, campanhas como a “Caminhada pela Valorização do Pediatra” e eventos científicos promovidos pela SBP também recebem o suporte financeiro da Nestlé. Durante a pandemia, a SBP, em parceria com a Nestlé e a Danone, organizou eventos online para profissionais da saúde, um movimento que, segundo especialistas, pode afetar as orientações recebidas pelos pediatras e, indiretamente, influenciar pais e mães nas escolhas alimentares dos filhos.

Esse tipo de apoio coloca em risco a credibilidade da SBP. Profissionais de saúde que promovem ou recomendam fórmulas e compostos lácteos acabam contribuindo para uma normalização desses produtos, prática que, segundo o estudo, impacta negativamente a exclusividade e a duração da amamentação. Os autores concluem que esse conflito de interesses “mina a credibilidade da profissão” e levanta dúvidas sobre a imparcialidade dos conselhos fornecidos aos pediatras.

O curso Nestlé de atualização em Pediatria

Um exemplo prático dessa influência pode ser observado no Curso de Atualização em Pediatria da Nestlé, que atrai milhares de pediatras todos os anos. Durante uma edição recente, o ambiente era festivo e voltado para a infantilização. Médicos participavam de jogos, competições e eram incentivados a interagir com produtos da marca, promovendo uma atmosfera de descontração que ofuscava questões éticas.

Os stands estavam repletos de produtos da Nestlé, com pediatras acotovelando-se para provar papinhas e participar de competições para ganhar brindes. Essa cena não apenas ilustra a estratégia de marketing da Nestlé, mas também expõe a infantilização da prática médica, onde profissionais respeitáveis são tratados como crianças em um parque de diversões. Essa dinâmica pode influenciar a percepção que os médicos têm da empresa e, consequentemente, suas recomendações aos pacientes.

O marketing e a infantilização

O marketing da Nestlé adota estratégias que exploram a psicologia humana, construindo uma imagem da empresa como uma \”Grande Mãe\” que se preocupa com a saúde das crianças. Essa tática gera uma conexão emocional com os pediatras, que, muitas vezes de forma inconsciente, começam a enxergar a marca como uma parceira na saúde infantil, mesmo diante de seu histórico controverso.

Essa abordagem revela como a indústria alimentícia pode se infiltrar nas práticas médicas, criando uma dependência que compromete a ética e a saúde pública. Médicos, que deveriam atuar como defensores da saúde infantil, podem se tornar propagadores de produtos que, embora sejam apresentados como benéficos, nem sempre são adequados para os pequenos.

Um estudo publicado em fevereiro na revista Globalization and Health aponta que, no Brasil, o marketing intensivo da indústria coincidiu com um declínio nas taxas de amamentação e a normalização do uso de fórmulas infantis. Ao mesmo tempo, observou-se um aumento no consumo de alimentos ultraprocessados entre adultos e crianças, refletindo uma mudança preocupante nos hábitos alimentares e na saúde da população.

Essas dinâmicas destacam a necessidade de uma maior vigilância sobre a influência da indústria na saúde pública. A relação entre médicos e empresas como a Nestlé precisa ser reavaliada para garantir que a saúde das crianças esteja sempre em primeiro lugar, livre de interesses comerciais que possam comprometer seu bem-estar.

Legislação

A Lei 11.265/2006, que visa promover e proteger o aleitamento materno no Brasil, proíbe fabricantes e distribuidores de produtos infantis, como fórmulas e alimentos de transição, de oferecer patrocínios financeiros ou materiais a indivíduos. O decreto que regulamenta essa lei define patrocínio como o custeio de materiais, pesquisas, eventos ou pagamento de profissionais de saúde para atividades relacionadas. Contudo, enquanto essa legislação proíbe tais práticas, o recebimento de itens patrocinados pelos médicos não é ilegal, e dados do Multi NBCAL mostram que apenas 54,4% dos profissionais de saúde conhecem a existência da lei, levantando preocupações sobre sua efetividade.

Um estudo conduzido por 16 pesquisadores de 10 instituições acadêmicas brasileiras, em colaboração com a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN-Brasil), investigou a situação em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. A Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância (NBCAL), inspirada no Código Internacional dos Substitutos do Leite Materno da OMS/Unicef de 1981, também regula a propaganda e comercialização de substitutos do leite materno. No entanto, a equipe de Boccolini encontrou que “6 em cada 10 farmácias e supermercados brasileiros descumprem a legislação”, evidenciando um padrão que se repete em vários países.

O relatório consultado pelo pesquisador da Fiocruz analisa o impacto global do marketing excessivo na promoção de produtos que competem com a amamentação. As postagens de empresas que fabricam fórmulas infantis alcançam “até três vezes mais pessoas” do que publicações que destacam os benefícios do aleitamento materno. Além disso, as mulheres que compartilham conteúdos sobre amamentação enfrentam assédio publicitário de produtos como mamadeiras e fórmulas. O coordenador do Observa Infância afirma que “essas mulheres deveriam ter um ambiente isento de propagandas que colocam em dúvida a capacidade dessas mães de amamentar”, garantindo que recebam informações adequadas sobre amamentação e seus benefícios para que possam tomar decisões informadas sobre a alimentação de seus filhos.

Importância do aleitamento materno

A SBP destaca que a amamentação, recomendada de forma exclusiva nos primeiros seis meses de vida e como complemento até os dois anos, traz diversos benefícios tanto para o bebê quanto para a mãe. Para o recém-nascido, o aleitamento materno é essencial, pois ajuda a prevenir problemas na formação dos dentes e na fala, fortalece o sistema imunológico contra doenças e favorece o desenvolvimento geral. Além disso, é um alimento completo, dispensando até mesmo a necessidade de água durante o período de amamentação exclusiva.

Um estudo da Universidade de Oxford, publicado na revista PLoS ONE, revelou que a amamentação está diretamente relacionada ao desenvolvimento cognitivo das crianças. A pesquisa com 7.855 crianças demonstrou que jovens de 14 anos que foram amamentados por pelo menos 12 meses apresentaram resultados superiores em testes de vocabulário em comparação àqueles que não foram amamentados, resultando em uma diferença de quase três pontos de QI. Para as mães, amamentar ajuda na recuperação mais rápida do útero e na redução do sangramento, além de diminuir o risco de anemia e de câncer de mama e de ovários.

Becker, em referência ao estudo da Fiocruz, aponta que a influência da indústria entre os médicos pode prejudicar a amamentação, como no caso do uso precoce de mamadeiras, que pode causar \”confusão de bico\”. Ele explica que \”quando o bebê começa a sugar a mamadeira, a maioria muito rapidamente passa a recusar o peito\”, pois a sucção do peito é mais complexa e essencial para moldar a boca do bebê corretamente. Becker também ressalta a sobrecarga das mulheres, que muitas vezes cuidam sozinhas dos bebês, e menciona a alta taxa de cesarianas no Brasil, que pode dificultar a amamentação e o contato inicial entre mãe e filho.

Conclusão

A relação entre a Nestlé e a pediatria brasileira é um exemplo alarmante da influência da indústria alimentícia na medicina. A infantilização dos profissionais de saúde e a manipulação das práticas médicas em nome do lucro são questões que exigem atenção imediata. A saúde infantil não deve ser um campo de batalha para interesses corporativos, mas sim uma prioridade inegociável. Para que a medicina retorne ao seu propósito original — promover a saúde e o bem-estar — é necessário romper com laços prejudiciais e garantir que as decisões médicas sejam fundamentadas na ética e na ciência.

Somente assim poderemos construir um futuro onde a saúde das crianças seja respeitada e protegida, livre da manipulação da indústria que, historicamente, colocou o lucro à frente do bem-estar. O chamado à ação é claro: a comunidade médica, os pais e a sociedade como um todo devem se unir para exigir mudanças e garantir que a saúde pública prevaleça sobre os interesses corporativos.

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