O tempo de tela tem se tornado um tema de crescente preocupação para pais, especialistas e educadores, especialmente em relação ao uso de celulares e tablets por crianças. Nos últimos anos, a relação dos pequenos com esses dispositivos ganhou destaque devido ao aumento da exposição infantil às telas, com consequências para a saúde e o desenvolvimento.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) atualizou suas diretrizes sobre o uso de telas em 2019, sugerindo que as crianças devem sentar menos e brincar mais. Com o avanço da internet, dos jogos online e da programação infantojuvenil, pais e escolas notaram que atividades de interação social e dinamismo vêm sendo substituídas pelos populares tablets e smartphones. Em resposta, entidades de pediatria, tanto no Brasil quanto no exterior, começaram a alertar sobre os impactos negativos no desenvolvimento socioemocional infantil.
O psicólogo social Jonathan Haidt chamou esse fenômeno de \”a grande reconfiguração da infância.\” Segundo Haidt, \”a infância baseada nas brincadeiras que tivemos ao longo de milhões de anos basicamente teve fim por volta de 2010 e foi substituída pela infância baseada nos celulares.\”
Estudos indicam que a exposição precoce e prolongada às telas é uma realidade preocupante. Pesquisadores da Universidade de Albany, nos Estados Unidos, mostraram que bebês de 1 ano já passam, em média, 53 minutos diários diante das telas, aumentando para até duas horas e trinta minutos aos 3 anos, quando o ideal para crianças de até 5 anos seria de no máximo uma hora diária. Esses dados, alarmantes mesmo antes da pandemia, destacam a necessidade de refletir sobre o uso de dispositivos e de implementar limites para mitigar os efeitos da exposição excessiva ao ambiente digital.
Impactos cognitivos e psíquicos do excesso de telas
O uso excessivo de celulares e tablets pode afastar as crianças da realidade ao seu redor. Muitos especialistas observam que a exposição excessiva às telas leva ao isolamento social e à redução da criatividade, além de prejudicar as habilidades de concentração. Esse afastamento da vida real ocorre, muitas vezes, devido ao entretenimento constante oferecido por aplicativos, vídeos e jogos, o que contribui para a dificuldade de lidar com o ócio de forma saudável.
Entre os impactos mais graves está o surgimento da chamada “demência digital” em crianças, que resulta na perda de habilidades cognitivas e de memória. Isso ocorre porque o uso contínuo de telas reduz a capacidade de fixar informações e processar dados de forma natural. Em adolescentes, o uso de redes sociais exacerba esse problema, causando uma ansiedade social conhecida como FOMO (\”Fear of Missing Out\”, ou \”medo de estar perdendo algo\”), que os leva a querer estar constantemente conectados.
Além desses problemas cognitivos, o sedentarismo, a obesidade e até problemas de sono e comportamentos como agressividade, hiperatividade e insônia estão ligados ao uso de dispositivos móveis. Essas questões são amplamente documentadas e têm levado cada vez mais pais e educadores a repensar o uso das telas no cotidiano das crianças.
Riscos físicos associados ao uso de telas
Além de afetar o comportamento e a saúde mental, o uso excessivo de telas traz riscos físicos importantes. Um desses riscos é a distração que pode causar acidentes, tanto ao volante quanto para pedestres, já que a falta de atenção devido ao uso de dispositivos móveis tem sido responsável por índices crescentes de acidentes de trânsito em países como Inglaterra e Estados Unidos.
Outro ponto de atenção são os riscos relacionados à exposição à radiação emitida pelos dispositivos sem fio, que pode ser especialmente prejudicial para crianças. Estudos indicam que, devido à sua estrutura física, as crianças absorvem mais radiação do que os adultos, tornando-as mais suscetíveis a possíveis efeitos prejudiciais, incluindo o risco de câncer. Embora sejam necessários mais estudos conclusivos, muitos especialistas defendem o princípio da precaução ao expor os pequenos a essas tecnologias.
Os efeitos na saúde mental também são alarmantes. Em seu livro A Geração Ansiosa, que lidera as listas de mais vendidos nos Estados Unidos, o autor expõe o impacto das mídias sociais sobre os jovens, evidenciando como essas plataformas criam padrões irreais e geram uma compulsão tecnológica que resulta em comparação social, solidão e atenção fragmentada. Jonathan Haidt observa que o fenômeno das telas \”roubou a infância\” e está associado a transtornos mentais, conforme mostram dados que indicam que, entre 2010 e 2022, os índices de ansiedade, depressão e anorexia entre jovens aumentaram 134%, 106% e 100%, respectivamente.
No Brasil, os impactos desse cenário também são sentidos. Dados da Fiocruz revelam que a taxa de suicídio entre jovens de 10 a 24 anos aumentou 6% entre 2011 e 2022, e os casos de automutilação cresceram 29% no mesmo período. Para o psicólogo Cristiano Nabuco, da PUC-SP, esse fenômeno requer uma resposta abrangente: \”Quando surgiram, esses recursos digitais traziam a ideia de entreter e conectar pessoas, mas acabaram se pautando por uma série de manipulações comportamentais. Isso fez com que uma geração ficasse absolutamente perdida\”, afirma. Ele alerta: \”Ou começamos a olhar para essa questão como algo grave ou corremos o risco de perder esses jovens.\”
Diante desses números, cientistas e profissionais de saúde defendem a necessidade de um movimento conjunto que inclua governos, pais, educadores e as empresas responsáveis pelas tecnologias, buscando criar uma sociedade mais consciente dos riscos e atenta aos limites necessários para um uso saudável das telas.
A influência os pais e os impactos na vida familiar
O comportamento dos pais em relação às telas é um fator importante, pois o uso compulsivo de dispositivos móveis também afeta os adultos. Muitos pais, devido às exigências de trabalho e às distrações online, acabam por reduzir o tempo de convívio com os filhos. Esse comportamento, que muitas vezes inclui verificar constantemente redes sociais e e-mails, compromete a qualidade das relações familiares, criando uma ausência no cotidiano.
Essa ausência tem consequências diretas na criação de vínculos afetivos, o que impacta o desenvolvimento emocional das crianças. Em vez de aproveitarem o tempo de qualidade com os filhos, muitos adultos acabam se prendendo a notificações, mensagens e conteúdos online. Isso não só compromete o ambiente familiar, mas também estabelece um exemplo de comportamento que as crianças tendem a replicar.
Impactos no sono
O uso excessivo de dispositivos móveis, especialmente à noite, traz riscos graves à saúde de crianças e adolescentes. Um levantamento da King’s College revisou 20 estudos com mais de 125 mil jovens entre 6 e 19 anos e alerta que a exposição à luz azul emitida por telas confunde o cérebro, prejudica o sono e afeta o ciclo biológico, resultando em problemas como crescimento reduzido, baixa imunidade, obesidade e até depressão. A luz das telas impede a produção de melatonina, hormônio essencial para o sono, o que mantém o cérebro em alerta e interfere nas fases do sono necessárias para a reparação física e mental.
A pediatra e especialista em medicina do sono, Ana Elisa Ribeiro Fernandes, explica que dormir menos de 8 a 10 horas por noite pode afetar a consolidação da memória e o aprendizado em jovens, com consequências graves no longo prazo. “Trata-se de um problema sério, coletivo e de difícil abordagem. A fórmula é orientar, criando empatia e mostrando os prejuízos acarretados, como raciocínio lento, falta de fluência na linguagem e ganho de peso,” afirma Ana Elisa. Além disso, a privação de sono pode impactar a produção de hormônios que regulam o crescimento, a fome e o estresse, agravando problemas de saúde física e mental.
Qual é a idade ideal para que as crianças tenham um celular?
Os pediatras recomendam que as crianças tenham um celular a partir dos 10 anos, enquanto a psicóloga Marta Leite sugere que a idade ideal estaria mais próxima dos 13 anos. O pediatra Fernando Chaves ressalta que o celular é uma ferramenta tanto para comunicação quanto para supervisão dos pais, sem uma idade exata, mas \”é uma vantagem\” se usado com responsabilidade. Já Manuel Magalhães acredita que os pais devem avaliar a necessidade e o nível de autonomia da criança, destacando que \”é uma responsabilidade; portanto, deve ser uma criança que tenha algum grau de responsabilidade e que perceba a importância, os riscos e os benefícios de ter um celular.\”
A psicóloga Marta Leite, por sua vez, reforça a importância de considerar a maturidade e o desenvolvimento cognitivo de cada criança, lembrando que um celular permite acesso ilimitado à internet e a diversas aplicações, o que exige um discernimento ainda em construção. “Um celular é algo que está aberto ao mundo; todos estão ligados à internet. Consegue-se facilmente acessar qualquer tipo de aplicação. Eles não sabem discernir o que é bom ou mau,” explica, defendendo que uma conversa aberta sobre os riscos é fundamental e que a idade ideal seria \”a partir dos 12, 13 anos.\”
Recomendações para reduzir os riscos
A pediatra Evelyn Eisenberg, do Hospital Albert Einstein, recomenda que os pais estabeleçam limites claros sobre o uso de telas, criando horários e locais definidos para o uso de dispositivos móveis, além de promover atividades ao ar livre. Algumas sugestões incluem:
Manter o dispositivo longe do corpo
Evitar contato direto, mantendo o celular a pelo menos 15 cm do ouvido.
Evitar o uso próximo de gestantes e crianças
Mulheres grávidas e crianças devem evitar manter o celular em contato direto com a pele.
Educar para o uso consciente
Conversar sobre os limites e a importância de se desconectar antes de dormir.
Limitar o tempo de tela
Especialmente para crianças menores de 2 anos, evitar o uso de telas, e para as mais velhas, restringir a cerca de duas horas diárias.
Criar momentos e áreas sem tela
Reservar momentos do dia, como as refeições e a hora de brincar, para estarem longe dos dispositivos.
Incentivar atividades ao ar livre
Promover o contato com a natureza e as brincadeiras ao ar livre como uma alternativa saudável e rica em experiências.
Considerações finais
A tecnologia não é intrinsecamente negativa; o que se deve evitar é o tempo de tela excessivo e irresponsável. O uso inadequado dos dispositivos pode levar a consequências prejudiciais para o desenvolvimento das crianças, afetando sua capacidade de socialização e de se conectar com o mundo ao seu redor. Por isso, é fundamental que pais e educadores estejam atentos ao tempo de tela e incentivem práticas equilibradas. Ao trabalharem em conjunto e promoverem um diálogo aberto, eles podem ajudar as crianças a desenvolver um relacionamento saudável com a tecnologia, assegurando que as inovações digitais sejam ferramentas que acrescentem, e não que afastem do mundo real.
A conscientização sobre os riscos associados ao tempo de tela é essencial, pois isso permite que as crianças entendam os limites e a importância de moderar seu uso. Além disso, é crucial valorizar a interação social e as atividades que envolvem o mundo físico, como brincar ao ar livre e participar de atividades em grupo. Incentivar momentos de desconexão digital não apenas fortalece os laços familiares e de amizade, mas também promove o desenvolvimento de habilidades emocionais e sociais. Assim, a tecnologia pode ser integrada de forma construtiva na vida das crianças, enriquecendo suas experiências sem comprometer sua capacidade de interação no mundo real.