No Brasil, a cesárea tornou-se a principal via de nascimento, especialmente em hospitais privados no Rio de Janeiro, onde mais de 90% dos partos são realizados dessa forma. Esse índice é significativamente superior ao recomendado internacionalmente, que varia entre 12% e 25%. Embora a cesariana seja essencial em alguns casos, o uso excessivo desse procedimento, muitas vezes realizado por conveniência, levanta questões de saúde pública e desafios para o sistema de saúde.
Marlise de Oliveira Pimentel Lima, docente do curso de Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, aponta que “esses dados apontam um aumento na morbimortalidade materna e perinatal e representam uma grave distorção na assistência à saúde, com desperdício de dinheiro público e privado, com intervenções cirúrgicas desnecessárias, em patamares muito acima do aceitável, expondo a mulher e criança a riscos como infecções, hemorragias, prematuridade, aumentando a mortalidade materna e perinatal.”
No contexto mundial, o Brasil ocupa a segunda posição entre os países que mais realizam cesáreas, com aproximadamente 60% dos partos. Na rede privada, essa taxa ultrapassa 80%, muito acima do limite de 15% recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De janeiro a outubro de 2022, observou-se um aumento de 57,6% nas cesarianas realizadas no país, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Esse crescimento reforça a cultura de cesarianas que se estabeleceu ao longo dos anos, transformando uma prática originalmente excepcional em algo corriqueiro.
Há fatores que impulsionam essa tendência na saúde pública brasileira, onde a taxa de cesáreas, apesar de inferior à do setor privado, ainda atinge cerca de 44,2%. A decisão pela cesárea pode ser influenciada pelo profissional disponível no plantão, pelo turno em que ocorre o parto (diurno ou noturno) e se é fim de semana. Com aproximadamente três milhões de nascimentos por ano no país, cerca de um milhão e seiscentos e oitenta mil são cesáreas, sendo 870 mil sem uma real necessidade cirúrgica.
O histórico da cesariana remonta à Antiguidade, com registros em manuscritos persas e assírios que descrevem o procedimento para retirada de fetos pela via abdominal, quando havia risco de vida para a mãe. Os romanos, inclusive, proibiam o funeral de gestantes sem antes extrair a criança do ventre. No Brasil, a primeira cesariana documentada foi realizada em 1822, um marco que deu início à gradual aceitação do procedimento. Ao longo dos séculos, a cesárea evoluiu de uma intervenção de emergência para um procedimento amplamente adotado, embora a cultura e os índices brasileiros levantem discussões sobre a prática e seu impacto na saúde materna e infantil.
A cultura da cesárea e suas origens no Brasil
A popularidade da cesárea no Brasil se deve a uma combinação de fatores médicos, econômicos e culturais. Muitos profissionais optam pela cesariana pela previsibilidade do procedimento e pelo controle de tempo, fatores que beneficiam tanto o sistema hospitalar quanto a logística dos médicos. Esse cenário reforça a “cultura da cesárea”, onde o parto normal é frequentemente retratado como doloroso e arriscado, enquanto a cesárea é vista como um procedimento “moderno” e seguro. Contudo, essa percepção nem sempre condiz com a realidade.
Segundo Marlise de Oliveira Pimentel Lima, “a princípio, todo parto deveria ser normal, e a cesárea seria opção nos casos em que há uma indicação clínica relevante reconhecida pelas melhores práticas como estabelecida nas evidências científicas”. A escolha do tipo de parto deve se basear nas condições clínicas e obstétricas da mulher e do feto, respeitando a autonomia da gestante. No entanto, estudos indicam que grande parte das mulheres brasileiras é orientada desde o início do pré-natal a acreditar que a cesariana é a melhor escolha, com práticas e informações que incentivam essa opção, muitas vezes sem considerar a saúde da mãe e do bebê.
Até alguns anos atrás, era comum marcar uma cesárea com flexibilidade de datas, o que frequentemente resultava em partos prematuros. Para evitar essa prática, o Conselho Federal de Medicina (CFM) determinou que a cesárea eletiva só pode ocorrer a partir da 39ª semana de gestação. Essa decisão teve como base estudos do Instituto Nacional de Saúde da Criança e Desenvolvimento Humano (NICHD), nos Estados Unidos, que mostram que entre 37 e 39 semanas o bebê atravessa uma fase crucial de desenvolvimento do cérebro, pulmões e fígado. Cesáreas realizadas antes desse período, sem que a mãe tenha entrado em trabalho de parto, podem resultar em prematuridade e problemas como dificuldades respiratórias, dificuldade em manter a temperatura corporal e na alimentação, além de uma tendência a altos níveis de bilirrubina, que pode causar icterícia e, em casos graves, danos cerebrais, problemas de visão e audição.
Comparando cesárea e parto normal
Embora a cesárea seja uma alternativa crucial em situações de emergência, sua realização sem necessidade médica pode trazer riscos consideráveis. Diferente do que muitos pensam, a cesárea é uma grande cirurgia, exigindo incisões que atravessam diversas camadas de pele, tecido e músculo, o que prolonga o tempo de recuperação e aumenta o risco de infecções e outras complicações para a mãe. De acordo com o obstetra Ricardo Tedesco, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, “a cesariana não pode ser demonizada, pois salva vidas, mas é preciso ressaltar que é um tipo de parto que contém mais riscos e, portanto, deve ser realizado em situações nas quais os minimize, e não os faça crescer”.
Para o bebê, a cesariana também apresenta desvantagens em termos de desenvolvimento imunológico e respiratório. O parto vaginal promove o contato com bactérias protetoras do canal do parto, essenciais para o equilíbrio do sistema imunológico e a prevenção de alergias. Crianças nascidas de parto normal tendem a apresentar menores taxas de doenças como asma, rinite, alergias alimentares, além de condições metabólicas como obesidade e diabetes tipo 1. Segundo o obstetra Renato Kalil, do Hospital Albert Einstein, cerca de 12% dos bebês nascidos em cesárea eletiva precisam de internação na UTI, comparado a apenas 3% dos nascidos de parto normal.
Além disso, o processo de passagem pelo canal vaginal desempenha um papel importante na respiração do recém-nascido, ajudando a expulsar o líquido amniótico dos pulmões e facilitando a adaptação respiratória. Kalil ressalta que “cerca de 12% dos bebês que nascem de cesariana eletiva (a cesárea marcada) vão para a UTI. No caso dos bebês que nascem de parto normal, o número cai para 3%”.
Estudos também apontam uma associação entre a cesárea e maiores taxas de obesidade infantil e diabetes tipo 1. Aos três anos, o índice de obesidade é duas vezes maior em crianças nascidas de cesárea, mesmo controlando outros fatores. A exposição à flora vaginal durante o parto normal favorece o desenvolvimento de um sistema imunológico mais equilibrado, o que pode explicar essa diferença.
Quais os prós e os contras da cesárea?
A cesárea eletiva oferece algumas vantagens práticas, como a possibilidade de escolher antecipadamente a data do nascimento, o que traz conforto e previsibilidade para a gestante. Além disso, ela evita as contrações do parto natural e torna o processo de trabalho de parto mais rápido, permitindo que o médico de preferência da gestante possa estar presente na cirurgia, caso desejado.
No entanto, as desvantagens desse tipo de parto também são significativas. A cesárea traz um maior risco de infecções e hemorragias, além de possíveis reações adversas ao anestésico e de um risco elevado de trombose nos membros inferiores. Outro ponto importante é o maior tempo de recuperação no pós-parto, devido à complexidade da cirurgia. Em casos de cesárea eletiva, o bebê nasce sem escolher seu momento, podendo ainda não estar pronto fisiologicamente para vir ao mundo. É importante lembrar que a cesárea, por ser uma cirurgia, está sujeita a complicações como qualquer outro procedimento cirúrgico.
A recuperação pós-parto: diferenças entre os tipos de parto
Outro aspecto a ser considerado é a recuperação da mãe. Enquanto o parto vaginal permite que a mulher retome suas atividades diárias em um ou dois dias, a cesárea requer um período de recuperação mais prolongado e doloroso. A cicatrização das camadas cortadas durante a cirurgia pode ser dolorosa, limitando a mobilidade e interferindo até mesmo na amamentação. Durante o parto vaginal, hormônios como a ocitocina facilitam a descida do leite materno, promovendo uma amamentação mais tranquila e reforçando o vínculo entre mãe e bebê. Por isso, o parto normal pode beneficiar não apenas a recuperação física, mas também a saúde emocional e o bem-estar da mãe.
O impacto das cesáreas eletivas na prematuridade
A decisão de realizar cesarianas eletivas antes do término ideal da gestação pode trazer consequências graves para a saúde dos bebês. De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), bebês nascidos entre 37 e 38 semanas têm 120 vezes mais probabilidade de desenvolver complicações respiratórias em comparação com aqueles que nascem após 39 semanas. Esse risco de prematuridade contribui para a alta ocupação das UTIs neonatais no Brasil, o que aumenta os custos para o sistema de saúde e representa um desafio significativo para a saúde pública.
Frente ao crescente número de cesarianas realizadas sem indicação médica, a ANS lançou recentemente uma campanha para promover boas práticas no atendimento às grávidas e reduzir a realização de cesáreas desnecessárias. “A mulher tem total direito sobre seu corpo, mas faltam informações que podem ser esclarecedoras no momento da escolha”, destaca a obstetriz Ana Cristina Duarte, coordenadora do Coletivo Nascer, que incentiva o parto normal.
A obstetra Simone Diniz, da Faculdade de Saúde Pública da USP, explica que “a experiência do parto vaginal no Brasil é marcada por intervenções desnecessárias e violentas, o que sedimentou uma ideia negativa sobre ele.” Esse histórico contribui para que a cesárea seja frequentemente vista como uma opção mais controlada e segura, embora essa percepção nem sempre reflita a realidade.
Alto custo
Os custos de saúde relacionados às cesáreas são consideravelmente mais elevados, além de estarem associados a riscos maiores de morbimortalidade tanto para a mãe quanto para o recém-nascido quando a cirurgia é realizada sem indicação médica clara. Esse quadro representa um problema significativo de saúde pública, mas pode ser alterado com investimentos e mudanças estruturais. Conforme aponta a professora Marlise de Oliveira, “o governo pode investir na qualificação técnica dos profissionais para elevar as taxas de parto normal, bem como monitorar as taxas de cesárea dos serviços com indicadores internacionais bem estabelecidos, como a classificação de Robson”. Além disso, “a inserção e valorização das obstetrizes e enfermeiras obstétricas nos serviços aumenta as taxas de parto normal e melhora a satisfação materna com o parto”.
No setor público, as cesáreas são oferecidas gratuitamente pelo SUS. Já no sistema privado, o custo do parto normal ou cesárea pode variar amplamente. Somente o procedimento, sem considerar eventuais necessidades adicionais, como a permanência do bebê em incubadora, custa entre R$10 mil e R$30 mil para uma cesárea e entre R$10 mil e R$40 mil para um parto normal nos hospitais mais caros de São Paulo. Os valores da equipe médica também oscilam, podendo alcançar entre R$5 mil e R$50 mil.
Humanização
O tema da humanização do parto no Brasil tem gerado intensos debates no Senado, impulsionado especialmente pelos altos índices de cesarianas e pelas denúncias de violência obstétrica recebidas durante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPI) da Violência Contra as Mulheres, em 2012 e 2013. Esses casos refletem uma realidade global, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), onde muitas gestantes ainda enfrentam abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto. Essa violência pode colocar em risco a vida da mãe e do bebê.
No Brasil, um dos grandes desafios para reverter esse quadro está em ajudar estados e municípios a cumprir as metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde. Segundo a médica Lizandra Moura, é essencial que as mulheres compreendam que o parto é um direito delas. Para aquelas que não apresentam complicações e não necessitam de uma cesariana por recomendação médica, Lizandra recomenda aguardar até 39 semanas antes de optar por uma cesárea eletiva.
Como parte dos esforços para promover o parto humanizado, o Ministério da Saúde implementou o Projeto Parto Cuidadoso em 626 maternidades do país. Em três anos, essa iniciativa evitou 10 mil cesarianas desnecessárias em 35 hospitais. A coordenadora de Saúde das Mulheres, Mônica Neri, ressaltou que o ministério já reuniu informações de todas as maternidades participantes do programa e que os resultados estão sendo apresentados aos gestores dessas unidades. Cada um deve elaborar um plano de ação para melhorar a atenção às parturientes.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) lançou em 2018 a campanha “Nascimento Seguro”, com o objetivo de garantir um nascimento seguro para os bebês no Brasil. A campanha busca assegurar que famílias e profissionais tenham acesso a uma gama completa de serviços e medidas de saúde que priorizem o bem-estar dos recém-nascidos. Esse esforço engloba várias frentes, incluindo ações de comunicação, mobilização social e diálogo com o Governo para encontrar soluções para os desafios identificados.
Mônica ainda destacou a importância de um parto humanizado, onde o processo se torna uma experiência mais positiva e envolvente para a mãe. “À medida que o parto se torna humanizado, esse momento passa a ser prazeroso, compartilhado com a família e com o próprio bebê\”, enfatizou ela, reforçando a importância de um cuidado mais sensível e respeitoso com as gestantes.
Conclusão
A epidemia de cesárea no Brasil é um reflexo de práticas moldadas pela conveniência e pela desinformação ao longo das décadas. No entanto, ao reconhecer a importância do parto normal e seus benefícios, o Brasil tem a chance de reverter essa tendência e alinhar-se aos padrões internacionais, que priorizam o nascimento vaginal em contextos adequados.
Fomentar uma nova cultura de nascimento, que valorize o parto natural e promova escolhas informadas, pode garantir um futuro mais saudável para mães e bebês. É fundamental devolver ao parto normal o papel central que ocupa na história da humanidade, respeitando suas características naturais.
A decisão entre parto normal e cesárea deve ser baseada em uma avaliação cuidadosa das condições de saúde da mãe e do bebê, longe de pressões culturais ou econômicas. A cesárea, quando indicada corretamente, é uma inovação médica que pode salvar vidas, mas seu uso indiscriminado deve ser evitado. Ao promover uma cultura que respeite as necessidades naturais do parto, é possível não apenas reduzir as cesáreas desnecessárias, mas também valorizar a saúde da mulher e da criança, assegurando um parto que respeite a fisiologia e a experiência do nascimento.